Acervo João Zinclar: Imagens da classe trabalhadora em movimento

Pesquisa e Texto: Sônia Fardin

O Acervo João Zinclar é um patrimônio da classe trabalhadora brasileira, pois se constitui de vasta documentação fotográfica sobre a luta de classes na história política brasileira entre 1994 e 2013, produzida por um militante de formação marxista que sobre sua atuação como fotógrafo afirmava:

“sou um comunista que se orienta pelos valores e pela teoria marxista de como interpretar e procurar transformar esse mundo (...) o que me motiva a fotografar é a luta de classes (...) antes de ser fotógrafo, sou um militante. A máquina [fotográfica] nada mais é que um instrumento a serviço das mudanças sociais” (ZINCLAR, 2009 – depoimento em vídeo).

O final da década de 1990 até 2014 esteve marcado em vários países latino-americanos pela ascensão, via eleitoral, de governos denominados como progressistas, o que caracteriza um ciclo político com especificidades ainda carentes de pesquisas, análises e interpretações teóricas.

No Brasil, nesse período, sujeitos políticos da classe trabalhadora como partidos, centrais sindicais, associações culturais, movimentos contra o racismo, contra o machismo e contra a homofobia puderam, pela via institucional, incidir na agenda do Estado burguês e conquistar instrumentos públicos de distribuição de renda, políticas de direitos humanos e mecanismos de valorização da diversidade cultural e de mídias democráticas e anti-imperialistas.
Contudo, as fragilidades e parcialidades dessas conquistas, as contradições das políticas identitárias e principalmente os limites políticos da conciliação de classes chegaram ao ápice em 2013.

Nesse embate, a classe capitalista, por meio de instrumentos jurídicos, midiáticos e empresariais, orquestrou o Golpe de 2016 marcado pelo Impeachment de uma presidente eleita, cujo roteiro inclui deturpar a história e imagem da esquerda, criminalizar movimentos sociais, promover retrocessos políticos,  destruir conquistas sociais e submeter a classe trabalhadora aos patamares de exploração do início do século XX.

Todavia, em que pese o momento atual seja de defensiva, é inconteste que os movimentos sociais da classe trabalhadora na América Latina viveram nos primeiros anos deste século experiências fortalecedoras de suas lutas políticas, que necessitam ser exaustivamente estudadas em suas vitórias e derrotas, inclusive para buscar superar o atual momento de retrocesso.

Uma das dimensões estratégicas das lutas políticas contemporâneas é a produção de narrativas visuais. É nesse campo que, para além da significância das dimensões quantitativas e qualitativas, o Acervo João Zinclar reúne informações sobre a luta cultural da classe trabalhadora brasileira no período denominado como ciclos progressistas, em especial no que tange às implicações políticas da visualidade fotográfica.

A mostra IMAGENS DA CLASSE TRABALHADORA EM MOVIMENTO reúne uma pequena parcela do acervo sob esse enfoque, o objetivo é apresentar imagens inéditas realizadas entre 1998 e 2013, por um operário de formação marxista que se fez fotógrafo produtor de imagens da sua classe em movimento.

Histórico do fotógrafo e sua produção militante

João Zinclar nasceu em 13 de agosto de 1956 em Rio Grande, cidade litorânea no estado do Rio Grande do Sul, faleceu em 19 de janeiro de 2013. Era filho de Luiz Silva e Leda Lima Silva, ambos operários de origem negra, sua vida foi marcada pelos enfrentamentos às opressões capitalistas presentes na história latino-americana. Começou a trabalhar na adolescência como comerciário e encanador industrial na construção civil. Aos dezoito anos, em busca de trabalho, decidiu migrar para grandes centros urbanos no sudeste brasileiro.
Nos anos 1970, a vivência na construção civil colocou-o em contato com a rotina árdua de alojamentos e canteiros de grandes obras e, assim, também, com a diversidade de culturas da classe trabalhadora brasileira. Viveu e trabalhou em meio as contradições do modelo de desenvolvimento da ditadura civil-militar no Brasil, que fazia crescer não apenas altos-fornos, aeroportos, indústrias e refinarias, mas também ampliava desigualdades, êxodo rural, injustiças e medo.
Em um ambiente político envolto em opressões e resistências, nos meados da década de 1970, João trabalhava em Salvador, ganhava salário de trabalhador qualificado mas vivia em condição laboral opressiva. Circulava também entre os jovens praticantes da contracultura que se afastavam da vida sujeitada às normas mercantis.
Nesse meio conheceu a artesã Carolina, que o convidou para viajar pelo Brasil. Deixou então o trabalho formal, tornou-se artesão. Já conhecia pescadores da beira mar e operários das grandes cidades, então, com o movimento hippie foi conhecer ribeirinhos da floresta amazônica e agricultores dos sertões e cerrados. Andou pelo Brasil entre 1976 e 1980. Contudo, no final dos anos 1970, a luta pela anistia aos presos políticos, as greves dos canavieiros nos estados de Pernambuco e Alagoas e as operários nas periferias da cidade de São Paulo fizeram-no rever a opção hippie e pensar em voltar para casa.
Em 1981, de novo em Rio Grande, passou a ler muito, em especial os jornais e revistas dos movimentos políticos de esquerda, com os quais também começou a interagir. Filiou-se ao Partido Comunista do Brasil, ainda na clandestinidade, retornou à vida operária, adquiriu uma câmera fotográfica e frequentou cursos do Foto Cine Clube Gaúcho.
Assim, em movimentos concomitantes, iniciou-se na militância sindical, na vida partidária e na fotografia amadora.
No início dos anos 1980, como membro ativo do Partido Comunista do Brasil, recebeu a missão de ir construir a luta dos trabalhadores em Campinas, interior do estado de São Paulo, onde foi trabalhar como metalúrgico e dirigente sindical, chegando a ocupar a diretoria de imprensa do Sindicato dos Metalúrgicos de Campinas e Região. Em Campinas viveu com a companheira Sílvia, dessa união nasceu sua filha Victória.
Em 1996 decidiu sair do partido e dos quadros sindicais, mas não da luta política, iniciou um novo ciclo de  militância: dedicação exclusiva à documentação fotográfica das lutas de entidades e movimentos sociais de resistência da classe trabalhadora.
Entre 1996 e 2013 militou como fotógrafo em lutas dos trabalhadores e trabalhadoras rurais e urbanos do Brasil, da Inglaterra, da Alemanha, da Bolívia, da Venezuela e do México, além de colaborações com boletins sindicais, blogs, sites, calendários, jornais e revistas da imprensa alternativa e popular.
As principais atuações foram com Jornal e Revista do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, Comissão Pastoral da Terra, Jornal Brasil de Fato, Sindicato dos Químicos, Sindicado dos Metalúrgicos, Sindicato dos Professores, Sindicato dos Trabalhadores da Construção Civil, Sindicato dos Trabalhadores da Unicamp, Sindicatos dos Correios, e com os trabalhadores do Museu da Imagem e do Som de Campinas.
Em 2005 iniciou a produção de uma cartografia visual das comunidades ribeirinhas das regiões que compõem a Bacia do Rio São Francisco, trabalho que publicou em 2010 com o título O Rio São Francisco e as águas no sertão.
Por sua militância fotográfica recebeu o reconhecimento dos movimentos sociais com os prêmios Medalha Hércules Florence – Mérito fotográfico, Campinas, SP (2005); Prêmio Luta pela Terra – Categoria fotografia – MST 25 anos – 1989-2009, Sarandi, RS (2009); Prêmio Amigos das Águas/ I Encontro dos Atingidos(as) pela transposição do Rio São Francisco, em Campina Grande, PB (2010) e Prêmio Pequi de Ouro, pela defesa do cerrado na Bacia do Rio Grande, em Barreiras, BA (2012).
Tornou-se conhecido como “o fotógrafo operário” que desenvolveu seu trabalho sem vínculos com instituições de mecenato ou patrocínio empresarial, sua produção fotográfica foi realizada a partir de suas relações políticas com organizações da classe trabalhadora; foram essas relações que sustentaram e deram substrato político a sua práxis.
Aos 56 anos, faleceu em um acidente automobilístico quando retornava de um trabalho, em 19 de janeiro de 2013.
Com sua morte precoce e abrupta, um grupo de militantes com os quais já atuava nas áreas de formação política, democratização da comunicação e produção visual assumiram com sua jovem filha a tarefa de dar seguimento as atividades de preservação e difusão de seu legado composto por 53 mil negativos flexíveis e 180 mil imagens digitais, além de jornais, revistas, impressos diversos.

 

 

Nossos inimigos dizem

Nossos inimigos dizem: a luta terminou.
Mas nós dizemos: ela começou.

Nossos inimigos dizem: a verdade está liquidada.
Mas nós sabemos: nós a sabemos ainda.

Nossos inimigos dizem: mesmo que ainda se conheça a verdade
ela não pode mais ser divulgada.
Mas nós a divulgaremos.

É a véspera da batalha.
É a preparação de nossos quadros.
É o estudo do plano de luta.
É o dia antes da queda de nossos inimigos.

Canção

Eles tem códigos e decretos.
Eles tem prisões e fortalezas.
(sem contar seus reformatórios!)
Eles tem carcereiros e 
juízes
que fazem o que mandam por trinta dinheiros.
Sim, e para que?
Será que e
les pensam que nós, como eles,
seremos destruídos?
Seu fim será breve e eles hão de notar
que nada poderá ajudá-los.

Eles tem jornais e impressoras
para nos combater e amordaçar.
(sem contar seus estadistas!)
Eles tem professores e sacerdotes
que fazem o que mandam por trinta dinheiros.
Sim, e para que?
Será que precisam a verdade temer?
Seu fim será breve e eles hão de notar
que nada poderá ajudá-los.

Eles tem tanques e canhões,
granadas e metralhadoras
(sem contar seus cassetetes!)
Eles tem 
polícia e soldados,
que por pouco dinheiro estão prontos a tudo.
Sim, e para que?
Terão inimigos tão fortes?
Eles pensam que podem parar,
a sua queda, na queda, impedir.
Um dia, e será para breve
verão que 
nada poderá ajudá-los.
E de novo bem alto gritarão: Parem!
Pois nem dinheiro nem canhões
poderão mais salvá-los.