Pesquisa e Texto: Sônia Fardin

João Zinclar (1956 – 2013), filho de Luiz Silva e Leda Lima Silva, nasceu em Rio Grande (RS), onde começou a trabalhar cedo como comerciário e depois operário da construção civil. Aos dezoito anos já era encanador industrial quando decidiu sair de casa, foi trabalhar em Cubatão, Campinas, Rio de Janeiro e Salvador. Ainda jovem, a vivência na construção civil colocou-o em contato com a rotina árdua de alojamentos e o caldeirão de culturas dos trabalhadores urbanos, imersos nas contradições do modelo de desenvolvimento da ditadura militar, que fazia crescer não apenas altos-fornos, aeroportos, indústrias e refinarias, mas também ampliava desigualdades, injustiças, mentiras e medo.

Em meados da década de 1970, João trabalhava em Salvador, ganhava salário de trabalhador qualificado. Encantou-se com uma artesã, Carolina, que o convidou para ver o Brasil. Deixou o trabalho formal, foi viver fora das marcas do sistema, tornou-se artesão. Percorreu o Brasil com o movimento hippie de 1976 a 1980. O moço que já conhecia o mar foi conhecer a floresta amazônica, os sertões e os cerrados, vivendo em acampamentos em beira de estradas e bordas das grandes cidades.

No final dos anos 1970, a luta pela anistia, as greves dos canavieiros em Pernambuco e Alagoas e as dos movimentos operários em São Paulo fizeram-no pensar: “tem coisa nova surgindo no Brasil, tá na hora de ver isso mais de perto”. Decidiu voltar para casa. Em 1981, de novo em Rio Grande, retornou à vida operária. Passou a ler muito, em especial os jornais e revistas dos movimentos políticos de esquerda, com os quais também começou a interagir. Numa dessas interações, foi recrutado para a militância do PCdoB, ainda na clandestinidade. Recordava: “quem me recrutou foi uma menina, ainda menor de idade, chamada Maria do Rosário, hoje filiada ao PT”. Neste mesmo período, adquiriu uma câmera fotográfica e frequentou cursos do Foto-Cine Clube Gaúcho.

Como membro ativo do PCdoB, recebeu a missão de ir construir a luta dos trabalhadores em Campinas, interior de São Paulo, onde trabalhou como metalúrgico e dirigente sindical entre 1985 e 1990. De 1990 a 1996, foi diretor de imprensa do sindicato dos metalúrgicos de Campinas. Lá conheceu e foi companheiro de Silvia e tornou-se pai de Victória.

Em 1996, decidiu sair dos quadros partidários e sindicais, mas não da luta política. Passou a dedicar-se integralmente à fotografia e atuou, desde então, como repórter fotográfico. Sua atuação principal foi a documentação das lutas de diversas entidades e movimentos sociais de esquerda. Desligou-se do partido e do sindicado, mas não da política, e iniciou um novo ciclo de militância: a documentação fotográfica das lutas de entidades e movimentos sociais de resistência da classe trabalhadora. Por esta opção e pelo valor de seu trabalho obteve prêmios e reconhecimento como fotógrafo de lutas sociais.

Colaborou em publicações de movimentos populares no Brasil, na Inglaterra, na Alemanha e no México, além de boletins sindicais, blogs, sites, calendários e outros veículos da imprensa alternativa e popular. Em 2005 iniciou a documentação do Rio São Francisco, que resultou num livro publicado em 2010, O Rio São Francisco e as Águas do Sertão, sua obra autoral mais conhecida.

Sua vida material foi sempre muito simples. Além do equipamento fotográfico, possuía um computador portátil, um caderno de anotações, uma pequena biblioteca, um armário com seu arquivo de imagens. Está organizado por temas e em ordem cronológica, estimado em cerca de 53 mil negativos flexíveis e mais de 200 mil registros em meio digital.

Sobre sua atuação como fotógrafo, afirmava: “sou um comunista que se orienta pelos valores e pela teoria marxista de como interpretar e procurar transformar esse mundo (…) o que me motiva a fotografar é a luta de classes (…) antes de ser fotógrafo, sou um militante. A máquina nada mais é que um instrumento a serviço das mudanças sociais”.

As imagens que realizou são, portanto, parte da ação de um trabalhador inserido nas lutas sociais, que soube identificar as transformações na cultura visual e no cenário político brasileiro nas décadas de 1980 e 1990, e perceber a necessidade de produzir registros das lutas populares sob a ótica de quem vive o movimento por dentro. No início do século 21 foi do analógico ao digital, sem receio de enfrentar os embates entre técnica e estética. Em 2010 começou a pensar em criar sites.

João era organizado. Em seu o computador há registros de estudos políticos e planos de trabalhos. Em 2012, criou uma pasta com o título Minha Exposição, onde armazenou seleções de imagens para uma mostra futura. No caderno rascunhava sobre sua trajetória, a necessidade de avançar no uso da fotografia como ferramenta política e seu respeito pelo trabalho de outros fotógrafos que se dedicavam à mesma temática: João Ripper, Douglas Mansur, Jesus Carlos, Sebastião Salgado e Dorothea Lange, entre outros.

Sobre seu próprio trabalho, declarava: “faço fotografia, faço denúncia (…), se não fosse a luta de classes talvez eu estivesse fotografando a obviedade do mundo (…) e o jornalismo diário convencional”.

Óbvio e convencional é algo que João não foi, mas é preciso dizer que se equivocou ao afirmar: “não sou artista, sou jornalista (…) não faço arte”. Embora tivesse suas razões para afirmar que “o sistema convencionou rotular de arte aquilo que é meio elitizado, a que ninguém tem acesso”, estava errado ao concluir que, por fazer da fotografia um instrumento de luta, precisava negar a dimensão artística de parte significativa de suas fotos, como forma de evitar os rótulos que traduzem arte como sinônimo de mercadoria.

Este é um equívoco (ou uma defesa) que alguns fotógrafos ativistas políticos cometem. Agem movidos pelo temor de que, ao fazer concessões ao conceito de arte, a fotografia de denúncia venha a ser dominada pela lógica mercantil e destituída de sua potência política.

O trabalho de João extrapola classificações convencionais, principalmente as imagens que retratam olhares. O olhar é relação, é no olhar do outro que reconhecemos e constituímos a própria existência como condição humana – que só se completa no outro. Os olhares captados pelas lentes de João são imagens que fazem pulsar a humanidade, são criações artísticas que fissuram o real. Isso as fortalece ainda mais como imagens de denúncia.

Mas, se no campo da criação artística João esquivou-se, no campo político sempre esteve passos à frente. Sua compreensão da memória como ação de resistência é um grande exemplo. Foi preciso, ao afirmar: “registro o instantâneo, amplio e coloco à disposição”. Esta declaração é a de quem percebeu que, além de fotografar, era necessário também ser um arquivista zeloso.

Neste aspecto, não poupou críticas às organizações de esquerda e movimentos sociais: “os movimentos pecam muito, são imediatistas, querem a foto só para o seu jornal daquela semana, daquele dia, existe um certo relaxo de parte de quem não deveria ser relaxado”. Tinha clareza do conceito de memória como projeto político: “A memória, o arquivo, a conservação deste arquivo, desta memória, fazem parte de uma história que tem incidência no presente e no futuro”.

Esta declarada compreensão está materializada em seu trabalho e acervo. Não apenas nas fotos, mas em cada anotação feita para identificar e dar acesso as imagens. Seu desejo pessoal de memória foi explicitado ao dizer: “gostaria que isso [meu trabalho] fosse visto por muita gente”.

Suas ações eram pautadas por despojamento material, grande sensibilidade humana, capacidade técnica e artística, principalmente, pela opção política militante de esquerda. Seus trabalhos ajudaram a fortalecer movimentos sociais no Brasil e no exterior. Por dedicar-se ao propósito de fazer denúncia, foi reconhecido pelos movimentos sociais com várias premiações.

Sobre sua atuação como fotógrafo, afirmava: “sou um comunista que se orienta pelos valores e pela teoria marxista de como interpretar e procurar transformar esse mundo (…). O que me motiva a fotografar é a luta de classes (…). Antes de ser fotógrafo, sou um militante. A máquina nada mais é que um instrumento a serviço das mudanças sociais”.

PRINCIPAIS REALIZAÇÕES

Colaborações com sindicatos: Sindicato dos Químicos, Sindicado dos Metalúrgicos, Sindicato dos Professores e Sindicato dos Trabalhadores da Construção Civil, Sindicato dos Trabalhadores da Unicamp e Sindicatos dos Correios. Atuações como repórter fotográfico: jornal Brasil de Fato,  Jornal e Revista do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, Conflitos no Campo Brasil, Comissão Pastoral da Terra, Biodiversidad, Sustento Y Culturas (México) e Regenwald Report (Alemanha). Entre 2001 e 2004, trabalhou para a SANASA (Sociedade de Abastecimento de Água e Saneamento S/A, Campinas) e Diário Oficial da Prefeitura de Campinas. Participações em mostras e exposições: Fome e Luta em Terra Seca (1998); Exposição Fórum Social Mundial (2001 e 2002); exposição coletiva sobre migrantes na região de Campinas, retratando as movimentações dos Sem Terra e Sem Teto, paralela à exposição Êxodos, do fotógrafo Sebastião Salgado(2002); exposição coletiva Águas que movem a história (2004); Exposição coletiva Olhares sobre a Cidade, comemorativa dos 230 anos da cidade de Campinas (2004); Ensaio fotográfico sobre a região do sub-médio Rio São Francisco, junto com o jornalista Flaldemir Sant´Anna (2005); exposição fotográfica O Outro Lado do Rio, sobre o Rio São Francisco em toda sua extensão, da nascente à foz (2007); Vinte e cinco anos do MST (2009).Colaborações com revistas e livros: A História da luta pela terra e MST (2001), Cutting the Fire: The story of the landless movement in Brazil (2002), Campinas – 230 anos: Governo Democrático Ppular (2004), O Banco Mundial e a Terra: ofensiva e resistência na América Latina, África e Ásia (2004), Encruzilhadas do Sindicalismo (2005), Água e Cidadania em Campinas e Região: O Desafio do Século 21 (2004), Campinas, imagens da história (2007), Da miséria ideológica à crise do capital (2009), Guardiões do Velho Chico (2011), Nos trilhos do trem(2012) e Riqueza e miséria do trabalho no Brasil II (2013). Livro autoral: O Rio São Francisco e as Águas no Sertão (2010). Premiações:Medalha Hércules Florence/ Mérito Fotográfico, concedido pela Câmara Municipal de Campinas, SP (2005), Prêmio Luta pela Terra/ Categoria fotografia/ MST 25 anos – 1984-2009, em Sarandi, RS (2009), Prêmio Amigos das Águas/ I Encontro dos Atingidos(as) pela transposição do Rio São Francisco, em Campina Grande, PB (2010) e Prêmio Pequi de Ouro, pela defesa do cerrado na Bacia do Rio Grande, em Barreiras, BA (2012).

Mudar o mundo, eu acho, é uma tarefa muito maior que a fotografia.

“Mudar o mundo eu acho que é uma tarefa muito maior do que a fotografia. Mudar o mundo é ter milhões de pessoas na rua em movimentos contra os opressores, contra as ditaduras, é isso que muda o mundo. E a fotografia, se ela quiser cumprir esse papel, tem que andar com esses movimentos, colocando realidades objetivas e subjetivas, porque não existe verdade absoluta.” João Zinclar, em “Caçadores de Alma”, de Silvio Tendler

Durante a formação de um ser humano, sofremos diversas influências sociais. Durante a infância e a adolescência a principal delas é a de nossos pais. Diversas pessoas despertam para a vida política quando saem de casa, comigo foi diferente. Desde cedo, meu pai e minha mãe me passaram “valores” que contribuíram imensamente para o que sou hoje, uma pessoa que tem seu lado “humano” despertado ao ver qualquer injustiça social, é a partir dessa consciência que para mim o legado que meu pai deixou se torna extremamente importante e me traz uma imensa responsabilidade.

A fotografia para o meu pai não era apenas uma arte, era uma forma de contribuir para a mudança de sociedade. A necessidade de preservar o momento, de contar uma história a partir da imagem, de registrar um fato, estava presente em todas as suas falas sobre o que era importante na fotografia, mas a história que ele contou, os momentos que preservou, os fatos que registrou, fazem parte de uma luta muito maior que a fotografia. O que movia meu pai era a luta política e a convicção da necessidade, mais que urgente, de transformar a sociedade. A partir disso, ele viu na fotografia uma maneira de contribuir com essa transformação, e hoje temos um grande acervo onde está presente uma parte da historia da luta dos trabalhadores, dos povos ribeirinhos, dos indígenas, das mulheres, dos povos explorados e oprimidos, uma historia que dificilmente vemos estampada nas capas de grandes jornais, uma historia que deve ser preservada.

João Zinclar, pai, companheiro, amigo, irmão, filho, hippie, gaitista, rockeiro, operário, fotógrafo, comunista, todos os dias ele nos faz muita falta. A dificuldade de lidar com a perda de um pai, de um amigo, de um militante, pode nos deixar muitas vezes paralisados, porém, sabemos da importância de divulgar o seu trabalho e o que foi João. Da imensa saudade e do convencimento político é que surge a força para realizar essa exposição, e muitas outras iniciativas que devem existir.

Victoria Ferraro Lima Silva
janeiro de 2013

A cidade natal, a família e a infância, nas palavras de João Zinclar

Eu sou gaúcho, da cidade de Rio Grande, lá no extremo sul do Estado. Fica entre Pelotas, que é uma cidade importante do Rio Grande do Sul, e o Chuí, que é no Uruguai. Na minha cidade, Rio Grande, a gente costuma se vangloriar e dizer que temos a maior praia em extensão do mundo. Rio Grande fica no litoral sul do Rio Grande do Sul. E pela beira da praia, se você quiser ir até o Uruguai, duzentos e tantos quilômetros, sem nenhuma interrupção.Você pode ir de carro, pode ir a pé, pode ir de moto, de bicicleta...Então, é uma das alternativas que você tem de ir lá para o Uruguai. Eu tô com cinqüenta e dois anos: nasci em 1956, no dia treze de agosto…

(...)

Meu pai era...era operário ferroviário. Já é falecido. E a minha mãe, ela era operária da indústria pesqueira. Se vocês já comeram aqueles peixes congelados que vendem nos supermercados em caixinhas. Se vocês repararem, a maioria vêm de Rio Grande, Rio Grande do Sul e Itajaí, Santa Catarina. Então, então... o Rio Grande é um importante pólo pesqueiro nacional. E a minha mãe era funcionária dessas indústria da pesca.

(…)

Bom...É, biológicos: quatro irmãos. Um já é falecido. Eu sou o mais velho. Então, eram três homens: com o falecido, ficou dois e uma mulher. E tem mais um irmão, que esse é mais velho do que eu, que esse a minha mãe pegou ele desde seus primeiros dias de vida que a mãe dele, durante o parto , faleceu e a minha mãe pegou para criar. Então, é o nosso chamado irmão de criação.

(...)

Eu fiquei em Rio Grande até os dezoito anos. Até 1974, 75, se não me engano. Uma grande vontade de sair para viajar pelo mundo. E aí, comecei a trabalhar com meus treze, quatorze anos numa lavanderia-tinturaria, entregando roupas nas casas, né. Passava pelo processo de lavar, secar, passar e eu era o entregador lá das roupas. Depois, saí da lavanderia e fui ser office-boy, na época, a gente chamava de office-boy, estafeta. Lembra da palavra “estafeta”? Eu era estafeta do Banco da Lavoura de Minas Gerais, que depois passou a ser o Banco Real Antigamente era o Banco da Lavoura de Minas Gerais. Fiquei dois anos no banco. Dos meus quinze até...Não, dos quatorze...Olha só como na época, esse...o trabalho_ não vou dizer o trabalho infantil, mas o trabalho adolescente era bem colocado, entendeu? Ele fazia parte do...E era de carteira assinada, todos os direitos sociais. E tinha todos os direitos sociais... E tinha um salário para todos os funcionários menores de idade... na época , tinha isso; senão me engano... tinha. Dos quatorze aos dezesseis, eu fiquei no banco; aí, eu saí do banco: fui ser repositor de mercadorias em supermercado. Aí, eu fiquei um ano. Quando deu em 73 ,74, teve um grande boom desenvolvimentista e, na cidade de Rio Grande, por ser uma cidade costeira, lá tem um dos principais portos marítimos do nosso país, que é o quê? Santos, Rio de Janeiro, Paranaguá e depois Rio Grande. Então, ali sempre teve obras. Lá teve...tem a primeira refinaria de petróleo construída no Brasil em 1965, que foi a refinaria Ipiranga. Então, é uma cidade que sempre foi um pólo marítimo pesqueiro e também industrial e nesse tempo, tinha algumas construções de algumas fábricas ali na área do porto: Graneleiros, Adubos Trevo, essas coisas. E tinha muita obra na montagem dessas indústrias. E eu fui: aí eu saí lá do supermercado e fui trabalhar como ajudante de encanador industrial nessas empresas de montagens industriais em Rio Grande. Então, num espaço de tempo de cinco a seis meses, eu convivi com muitos operários de outras partes do país. Então, tinha muitos soldadores baianos, pernambucanos, encanadores, caldeireiros, tudo de fora, força-de-trabalho que iam de outras cidades e de outros estados pra lá montar a fábrica. E aquele clima todo assim de peão trecheiro, peão que viaja com...de montagem de obra em obra, montando os mais variados setores da economia. Aquele clima, junto com a vontade que eu tinha de viajar e conhecer o mundo, fechou, entendeu? Quando acabou a construção que, na verdade, era de uma obra de uma fábrica de adubo e fertilizantes, quando acabou a obra, eu já era meio oficial de encanador, né. Eu entrei como ajudante e já era meio oficial de encanador, Aí, com aquela perspectiva de estar viajando, de estar conhecendo os lugares trabalhando, aí eu já fiz os dezoito anos nesse período, aí eu me enchi de razão, de maioridade, aí eu falei pro meu pai e minha mãe “olha, tô indo viajar com a empresa, entendeu? Vou trabalhar: por onde eles forem, eu vou”. Teve uma certa resistência familiar e tal. Meu pai ainda chegou a (incompleto). Eu comprei a passagem pra ir pro Rio de Janeiro, que a próxima obra que a Nordon, que é uma indústria metalúrgica em São Bernardo do Campo, mas que também faz montagens industriais, várias obras, pelos lugares afora.

 

(Entrevista gravada pela equipe do MIS em 17-07-2009)

Sobre João Zinclar ver também: